Do Porto Velho Hotel à Unir Centro

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O tempo todo o tempo passa (Arnaldo Antunes)

domingo, 19 de dezembro de 2010

Por que escrever?

Ideogramas de E.M.M.C.

   Escrevemos porque existem lápis.

Esta reposta é perfeitamente suficiente. Para mim próprio não preciso de mais. Nem sequer me preocupo em saber (tentar saber) porque se fabricam lápis, porque se inventaram os lápis.
Se quiser ser mais essencial, direi: Escrevemos porque temos dedos. E se quiser ser mais profundo, direi: escrevemos porque temos músculos, ossos e nervos. E se quiser ser transcendente direi: escrevemos porque escrevemos. Se quiser explicar alguma coisa, direi: escrevemos porque desejamos estender a fala, em duração e capacidade de comunicar. Se quiser realmente saber porque escrevemos, então é melhor começar a escrever. Então perceberei que escrever é um ofício. Ofício que se pode aprender, mas que ninguém ensina.
Um ofício em que ao oficiante nada se deve pedir; nem um ato de fé inicial, nem um juramento. Só se lhe pede que escreva. E só depois de ele escrever é que se vê se escreveu, e como e para quê. Logo pelo texto que escreveu, se vê se oficiante acredita ou não na escrita que escreveu. Mas isso não interessa pelo oficiante em si, pela sua personalidade excelsa ou não, etc. Isso interessa só pelo texto que ele escreveu. Que esse texto é nosso. Não para nós gostarmos ou não de o ler, mas nosso para nos ensinar a ler: a lê-lo.
Se o texto é daqueles que nós já sabemos ler, então o oficiante não acredita no poder criativo do material que usa. Mas se o texto é daqueles que não sabemos ainda ler, ou que nos faz soletrar, ou que nos corta o ritmo do pensamento, então o oficiante escreve e sabe porque escreve e acredita no poder demiúrgico da palavra. A escrita, com todos os seus poderes está e estará entre nós. Por isso exigir-lhe-emos uma responsabilidade. Por isso ele há-de fazer-nos acreditar que tem uma função, a de recriar os seus materiais, e de com eles realizar mais, muito mais do que as palavras escritas nos dizem como sinais que são, negros sobre uma folha branca.
Há pois que fazê-las dizer esse “mais”. Sabemos hoje depois de um século de Modernidade: 50 anos depois da destruição DADA; 40 anos depois do mergulho do surrealismo; depois de 10 ou 20 anos de experimentalismo em todas as línguas e regiões do mundo; sabemos hoje que as operações físicas alteram o conteúdo semântico, ou a temperatura informacional dessa fala ou dessa escrita e portanto são criadoras (re) de língua viva. Assim de operações morfológicas, de operações fonéticas e de operações sintáticas, emerge uma nova semântica e uma língua reativada surge.
Uma semântica não pré-existente, nem oferecida por ninguém mas criada por quem sabe como e para quê servem os lápis. E toda esta operação tem uma razão de homens para os homens.
(...)
Experiências multimídias de E.M.M.C.

CASTRO, Ernesto Manoel de Melo e. O próprio poético: ensaio de revisão da poesia portuguesa atual. São Paulo, Quíron, 1973. p.: 15-16.

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. "Uma semântica não pré-existente (...)E toda esta operação tem uma razão de homens para os homens."

    Este trecho sintetiza o texto inteiro e, talvez, perpassa o ser difícil e polêmico da literatura: ser presença, ser um presente de linguagem, sua atulidade absoluta, "escrevemos porque existem lápis"; no entanto, conter tudo o que é humano, passados, futuros, sociedades, antropidades, filosofidades, historicidades,... ou seja, há sujestões de onde e por que veio o lápis. O texto mostra, muito mais do que comenta, por que a literatura é sujeita a tantos olhares, de várias disciplinas, tradições, grupos - de vários discursos. Mas mostra sobre tudo que muito desses olhares podem rastrear a árvore inteira e não provar do seu fruto, seu motivo de ser: que é arrastar tudo isso para o imedi-ato literário, onde nenhum passado ou quadro social estará lá do mesmo modo que foi colhido e tolhido pelo lápis; a não ser que, em nome desse mesmo, seja menos literário tanto quanto se aproxima desse "mesmo".

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  3. É conversando que a gente se entende, Deivis. Valeu!

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  4. Pensei na palavra ou palavrei o que pensava? Trovão, palavrão enfureceu em mim, o baixo calão, o que baixo ou mesmo calado ruminava. Pus nas mãos, calejado, apontei meu cajado, atravessei o lobo no coração das ovelhas.


    Não é revolver que só mira um ponto, o pixel interessante. Granada: atira em 360°³ – graus esfericúbicos –, em 3D: portanto, céus,terras, horizontes e tripulantes não escapam a sua ira, seu deboche e sua súplica.


    Passado o tempo, não deu para medir quanto, após o funeral do tempo, essa granada é atômica, faz-se suicídio épico – por mais que se queira lírico.


    Queremos matar-nos o mundo; e nisso Deus nos compreende – ou deus, se prefere a humildade – se chover versos quarenta dias e quarenta noites.

    De braços com a poesia vamos aos bares, igrejas, escolas,praças, Tudos e descobrimos que fora disto não há mais nada; mas descobrimos que dentro disso não realizaremos nem um terço e inventaremos + 70 X 7 inteiros ao passarmos mil e uma noites em claro.


    Então já contagiados. Atrapalhando outras doenças que parasitam o mundo; uma doença que tem efeitos colaterais: Artzsche. Crianças, agora numa reinocência, gargalhada de bebê para camelesos; já indiferente, um tanto complacente, aos mau-humores de leão.

    As outras doenças querem ilusões motorizadas, estruturas de aço e pedra, como se os atropelamentos, o peso pontiagudo caindo nas cabeças, jorrando sangue, fizesse com que fosse
    mais sério, mais real: sem paciência para carrinhos puxados a mão ou castelinhos de areia – que decerto constituem o reinodos céus.


    Suportamos a febre e o deserto das outras doenças, que deixavam de cabeça quente, porque tomamos o leite materno estelar, diretamente da via láctea.


    Mas é certo que poesia também mexe com sangue. Ela vai tão a fundo no sangue que mexe no seu porquê, por que e para quem trabalha, onde o sangue é empregado, para onde corre fervente ou sereno: caudaloso hemossentido.


    Há muito que o sangue tem a ilusão de estar alimentando células que têm seu fim para os tecidos que. Mas tudo isso: nervos, órgãos, o cérebro, apenas edificam um concreto holograma para dar vida a fantasmas a sua imagem e dessemelhança; não para parar no reflexo, mas para outro refluxo e, a partir de sua imagem, ser muito mais.

    Deivis in: SEMEM HUMAN HUMUS

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